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Conto: A espera

  • 31 de out. de 2019
  • 5 min de leitura

Atualizado: 27 de mai. de 2021

Uma hora. Parte ínfima de um ano inteiro e que precisava suprir a ausência das mais de oito mil horas que passavam separados e, como sempre vinha acontecendo, ela era a personificação da ansiedade. A noite mal dormida apoderava-se de quase toda sua pele clara em forma de enormes olheiras.

Ela ouvia o tic tac do relógio pendurado na parede, as crianças correndo e gritando pela rua, as campainhas tocando a todo momento, exceção à sua, desligada dois dias antes. Não podia ser incomodada, e nem se distrair um segundo sequer. Nos outros 364 dias sim, mas nesse dia em específico, ela era puro instinto.

Doze horas. Ouviu o badalar do relógio e prendeu a respiração. Era chegado o momento da magia acontecer. Olhos concentrados no círculo de pedras sobre o chão de madeira e na fumaça do incenso que queimava lentamente e dançava no ar.

Um minuto e nada. O livro aberto no chão era o lembrete de que tinha feito tudo exatamente da maneira que vinha fazendo nos últimos quinze anos. Só não entendia porque não tinha dado certo dessa vez e seu corpo estremeceu. Aquele atraso carregava apenas um significado.

Dois minutos e ela continuava sentada olhando os anéis da madeira que um dia suprira com vida a floresta vista pela janela aberta. Cada fragmento que compunha aquele pedaço de chão havia sido escolhido à dedo. As mais antigas, as mais sábias. O círculo formado pelas pedras esculpidas de forma metódica e suas facetas exibiam a exuberância de sua força. O banho de purificação executado horas antes de forma ritualística. Tudo estava como devia, mas nada acontecia.

Retomou o cântico de chamamento, o mesmo que entoara durante toda a manhã e que invocava a força de seus ancestrais. Uma lágrima rolou por sua bochecha e mesmo assim seus lábios reproduziam as palavras que surgiam em seu coração e que os uniam por breves e felizes momentos depois de um ano inteiro de exílio.

Ela sabia que um dia se depararia com aquela realidade, a de ter a solidão como companheira, mas nunca esperara ser tão cedo. Uma maldição que levava sua juventude, que arrasara com sua vontade de viver junto aos seus e que a prendia ao amor que não conseguia conceber ser tão proibido a ponto de aprisiona-los daquela forma.

Pegou com as mãos trêmulas o livro que repousava aberto ao seu lado e releu todo o processo. Já o memorizara, mas mesmo assim relia todos os dias. Passou os dedos rapidamente sobre as letras já desgastadas pelo uso e suspirou constatando o que já sabia. Estava sozinha naquela sala que se tornara sua ancora de esperança ao mesmo tempo em que era seu cárcere. Desejava como louca que aquele espaço se enchesse com a presença dele. Sua aura preenchia todos os vazios daquele lugar e de seu peito. Não queria conceber o que tinha acontecido dessa vez.

A dor que sentiu ao perceber que ele não viria a obrigou a dobrar-se até encostar a testa no chão. O tecido azul do vestido costurado para aquela ocasião restringiu seu movimento e ela puxou a manga que resistiu por alguns segundos antes de ceder fazendo um eco sussurrado de agouro vibrar pelas paredes. E ela puxou novamente. As mangas, a gola e a saia esvoaçante partiram-se e gritaram a dor que a queimava por dentro até que se transformassem em um amontoado de tramas presas por poucos fios que resistiram a sua fúria.

O círculo intacto e vazio era o aviso de que seus temores se tornaram realidade. Restavam ainda muitos minutos e enquanto o derradeiro não desse lugar ao novo badalar, ela não sairia dali. Esfregou as mãos, ajeitou o pano destruído sobre seu corpo, respirou fundo e esperou. Precisava se apegar a menor possibilidade e continuaria, ano após ano, a tentar. Entregar-se não era uma opção. Essa era a promessa de sua vida.

Ansiava por poder ver aqueles olhos negros, os cabelos encaracolados, o sorriso deslumbrante, o corpo concebido para venerá-la, mas naquele momento tinha que alimentar somente as lembranças... Da primeira vez que tinha conseguido trazê-lo... a surpresa... o suspiro de alívio... e o desalento ao perceber que não podiam se tocar. Ele ficava restrito aquele pequeno círculo pela única hora em que o sol estava em seu ápice, no dia de celebração à abundância e à Deusa.

Ouviu um leve toque na porta, mas ignorou. Para evitar ser incomodada, deixava uma cesta repleta de doces para que as crianças não a atrapalhassem naquele dia. Aquelas vinte e quatro horas eram as que mais sugavam suas energias. A preparação, a entrega e por fim o isolamento a deixavam ressequida por dias.

Ouviu novamente o leve toque em sua porta e tapou os ouvidos. Aquele era o dia em que sua mente focava exclusivamente em encontra-lo, no entanto, ele não viera e talvez nunca mais viria e ela teria que esperar mais um ano para tentar novamente.

Os minutos. Esses não tardaram a findar. E alguém continuava a bater a sua porta.

Levantou abruptamente do chão. Ignorou o fato de ter deslocado as pedras do círculo, a fisgada que sentiu na perna ao pisar em falso e correu até a porta com uma única intenção, descarregar sua raiva em quem insistia em tirá-la de sua missão.

Abriu a porta de forma abrupta e preparou-se para xingar quem estava do outro lado, mas tomada pela surpresa com a imagem que se avolumava à sombra do carvalho que estranhamente se projetava até a casa, apenas engoliu em seco. As lágrimas escorreram por seu rosto atrapalhando sua visão, o corpo convulsionou levemente e suas pernas bambearam.

Poucos segundos agora a separavam da primeira hora e ela só sabia lamentar. Sentiu o polegar acariciar sua bochecha e estremeceu com as lembranças que aquele toque provocou. Não era possível. Nunca foi. Quinze anos sem um único toque. Nem ultrapassar a barreira etérea do exílio do tempo. Mas ele tinha conseguido algo que ela não fora capaz de realizar.

As mãos tocaram-se brevemente antes da hora findar e uma leve bruma apoderar-se do corpo daquele que ela amava e carrega-lo para perto da árvore sagrada. E antes que ele desaparecesse por completo ela jurou ter ouvido uma frase.

O som de algo caindo ao chão chamou sua atenção. Uma pedra rolou para longe e parou dentro do círculo que não servira para nada naquele dia. Ela correu, agarrou a pedra que ainda carregava o calor de um corpo, levou para perto do peito, fechou os olhos sem conter a enxurrada que encharcava seu rosto e soltou o ar, exausta.

Ela caiu. Os cabelos chicotearam sua face, as pedras arranharam sua pele e o eco de seu grito foi o último som ouvido antes da explosão.

Crianças gritaram assustadas com as chamas que atingiram os céus. Sirenes soaram pela tarde toda e o jornal do dia seguinte estampou a manchete levada pelo vento junto a fumaça negra na pequena cidade. “Tragédia no dia das bruxas. Jovem morre em incêndio que destruiu duas casas.”

Ninguém soube explicar o círculo de madeira que permaneceu intacto quando os escombros foram retirados, nem os calafrios que percorriam as peles dos mais destemidos. Todos tinham medo de chegar ao fim da rua e ver aquele local que mais parecia um altar. Para além da notícia da tragédia, a história se espalhou. Como um pedaço de chão de madeira ficara como novo após tamanha fúria do elemento destruidor era a pergunta que se faziam ao cederam à curiosidade.

Quem ousava se aproximar na metade do dia jurava ver um vulto azulado seguido de um grito agonizante. Quem ousava se aproximar na metade da noite jurava ouvir um cântico entoado com o vento.

- Só mais um ano.


 
 
 

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