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Conto: Uma noite feliz

  • Foto do escritor: Margarete Bretone
    Margarete Bretone
  • 20 de dez. de 2019
  • 6 min de leitura

Atualizado: 27 de mai. de 2021


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Os resmungos acabaram, finalmente. Ouvir cada um deles reclamando sem parar por terem que se esgueirar por uma chaminé suja e fedida já tinha acabado com o parco humor de Dorugh. Preferiu não comentar nada, mas se fosse para roubar alguma coisa eles estariam felizes e estalando os dedos em expectativa, mas não. Resolveram atormentar sua noite.

Os guardiões estavam em seu encalço e isso tornava tudo mais perigoso e todo cuidado era mais do que necessário, mas ele precisava demonstrar que as pessoas mais importantes de sua vida estavam ali. Não poderia deixar a dúvida brotar nos corações daqueles que habitavam aquela casa. Só não podia revelar seus motivos aos companheiros. Segredo não pode ser compartilhado, essa era sua certeza.

No topo da chaminé ele segurava o ar sabendo que os companheiros estavam se arriscando por ele, mesmo sem entenderem suas razões e ainda se arriscariam nas chaminés de outras casas, disfarce importante para não chamar a atenção para aqueles que precisava proteger.

A cada corpo que ele via ser engolido pela construção de pedra, seu coração dava um pulo. "O que não daria para ver os olhos do menino assim que encontrasse o pacote..." Devaneou assim que viu o último corpo baixar na escuridão e conteve a vontade de jogar tudo para o alto, ou melhor, puxar todos eles para fora e se jogar no lugar deles.

Lembrou-se de imediato quando viu Sainy, sua amada, pela janela do quarto, incógnito pela sombra da noite. Os cabelos loiros escorrendo pelas costas cobertas por uma manta vermelha e o olhar vasculhando a noite, em vão. Ela sentia a presença dele ali, mas não podia arriscar serem expostos. Enquanto ele não provasse sua inocência estavam fadados à distância e ao disfarce e ela estava cumprindo muito bem seu papel. Ele estava tão perto de finalmente reconquistar seu posto e depor quem tinha ameaçado sua família, por isso precisava de máxima cautela.

Ninguém naquela aldeia sequer sonhava que abrigavam a rainha e o herdeiro de Nuhr. Detentora de grande poder ela era capaz de camuflar sua aparência e a do filho e como uma aldeã viúva ela foi aceita naquela pequena comunidade e aguardava o momento de regressar a sua terra natal.

Guerreira nata, não se conformava em ter que esperar, os xingamentos e a insatisfação ainda vibravam ao redor de Dorugh como uma carícia gelada em sua pele, mas pela segurança do filho foi obrigada a ficar para trás.

Primeiro sentiu um tranco, depois ouviu um xingamento e os corpos se debatendo. Sua audição aguçada, bem útil para manter-se incógnito e livrar-se de emboscadas, o alertara que algo tinha saído muito errado, e ele sabia que o menino que carregava suas feições quando não estava sendo protegido pela mãe, também a tinha, por isso flagrara seus companheiros que se gabavam por serem silenciosos e rápidos, quando deveria estar dormindo.

- Moleque atrevido.

Tentou se irritar, mas um sorriso largo invadiu sua carranca e foi obrigado a conter a gargalhada que se embolou em sua garganta. Olhou pelo buraco que engolira seus companheiros e viu uma cabeça aparecer iluminado pela chama de uma vela e não resistiu. Teria que pensar rápido no que dizer ao menino com os olhos arregalados por sua agilidade ao descer, mas a vontade de puxá-lo para seu colo o impedia de ter um pensamento coerente.

Chegou à sala pequena demais com todos os sujeitos mais procurados da província ainda sem saber o que fazer e o que falar quando se deparou com os olhos negros do garoto, caminhou na direção do menino, mas foi barrado por uma voz forte que vibrou dentro de seu peito e fez seu coração bater frenético.

- Não se aproxime.

Os pés de Dorugh mudaram de direção e ele chegou rapidamente até Sayni, sua amada, sua mulher, sua metade. Ela foi rápida, pulou em seus braços e o enlaçou pelas pernas. As bocas se encontraram, sedentas. As mãos frenéticas percorreram os corpos ávidos e extasiados pelo reencontro desastroso. Os cabelos louros que vira antes aos poucos transformaram-se em negros e ele respirou fundo o máximo de tempo que pode para poder aspirar o aroma delicioso que ela emanava. Sua mulher. Sua rainha. Sua guerreira e feiticeira.

- Quanto tempo temos? – ele perguntou sem descolar os lábios dos dela.

- Importa?

Sim, importava demais, mas mesmo que durasse apenas alguns minutos sua recompensa estava sendo das melhores.

- E ele?

- Está tendo um sonho bom, muito bom.

Dorugh olhou a sua volta, os companheiros retornavam para a chaminé com as brincadeiras típicas daquela trupe de foras da lei, cochichando sobre as outras casas que teriam que ir.

- O que você fez?

- Trouxe o homem que amo até mim. Não se preocupe, você está lá em cima esperando por eles. - Vendo as sobrancelhas grossas de seu amado se arquearem, completou - Pensou mesmo que iria apenas passar por aqui sem ser percebido?

Sayni foi rápida, apoiou-se sobre seus pés, jogou o corpo para o lado, empurrou-o pelos ombros fazendo-o cair de costas no chão com um sorriso idiota no rosto. Mais rápido ainda foi o reflexo na parede do brilho da lâmina que se alojou em seu pescoço e chamou a atenção dos que ainda andavam pela sala aguardando o momento de sair dali.

- Anda logo, inútil. - a voz grossa de Gurth, um magricelo que vivia falando em almas penadas e fantasmas ecoou pela sala – Estou com mal pressentimento desse lugar.

- Se você me deixar aqui mais um ano, eu te mato. – Sayni sussurrou.

Ele também foi rápido. Com um movimento estudado, jogou as pernas e o corpo e a encurralou no chão. Ali eles não eram surpreendidos, cada movimento era concedido pelo outro, ambos cediam e deixavam o desejo tomarem conta da situação.

- Falta pouco agora.

- Eu te amo, Dorugh. Não me faça esperar mais, senão...

Ele não permitiu que ela concluísse a frase. Sua necessidade de estar com ela, de tocá-la era tão grande que não queria perder tempo dizendo que na próxima semana chegaria a oportunidade de recuperar o que lhe pertencia. Louco de saudade só percebeu a movimentação ao seu lado quando ouviu a voz do menino e paralisou.

- Mama, meu presente chegou.

Dorugh sorriu. O menino real, não aquela ilusão que Sainy tinha criado, estava parado olhando a chaminé onde os homenzarrões tinham desaparecido instantes antes e onde um enorme presente repousava aguardando seu dono.

- Olha, é verdade. - ela respondeu com entusiasmo.

Embasbacado, Dorugh viu o filho correr, pegar o pacote e voltar em sua direção sorrindo de felicidade.

- Vamos abrir, mamãe. - falou com ele.

- Claro.

Dorugh respondeu tentando disfarçar a emoção. Sayni em momento algum perdera a guarda, mesmo louca de paixão em um momento de luxúria, indicativo de quão poderosa sempre fora e que causou a inveja em quem crescera com ela e a chamava de irmã. O menino tinha a certeza de que estava falando com a mãe, quando na realidade, falava com ele, que não conseguia fazer nada, senão abrir e fechar a boca inúmeras vezes. O menino sentou no colo de Dorugh achando que era a mãe, as mãos pequenas procuraram a emenda do embrulho para poder abri-lo e não conseguia parar de sorrir. O brinquedo de madeira em formato de cavaleiro e seu cavalo fez o menino soltar um grito entusiasmado e pular do colo de pai.

- Eu tentei ficar acordado, mas não consegui. Você viu ele, mama?

- Não, querido. - Sainy respondeu pelo marido que não conseguia se mexer.

- Eu queria falar com ele. Fazer um pedido.

- Qual pedido, querido?

- Queria pedir meu pai de volta. Eu sei que ele pode trazer o papai.

Dorugh não resistiu, abraçou aquele menino e deixou as lágrimas escorrerem livremente. Aquele corpo pequeno que não pudera tocar por dois angustiantes anos estava ao alcance de seus braços. Sua mulher estava ao alcance de seus braços e sua vida voltaria a ser o que era antes de serem traídos. Era, acima de tudo, uma promessa silenciosa ao filho. Buscando forças do fundo de seu peito, Dorugh cochichou no ouvido do menino.

- Ele concederá seu desejo, meu pequeno príncipe.

- Agora vá dormir. - Sayni falou ao menino e gesticulou para que Dorugh o levasse para a cama.

Dorugh levou o filho ao quarto, ajeitou as cobertas sobre o corpo quentinho com cheiro de esperança e beijou a testa do menino que segurava o cavaleiro junto ao peito.

- Sabe, mama, eu sei que ele vai conceder o meu desejo.

- É mesmo? - Dorugh finalmente encontrou a voz.

- Estou até sentindo o cheiro dele.

Dorugh sentiu a urgência de poder estar entre as pessoas que tanto ama e a certeza de que daria tudo certo. Por ele, seu lindo menino, por Sayni, sua amada esposa, por seu povo. Aconchegou o corpanzil ao lado do menino, sentiu a quentura do corpo de Sayni quando o colchão da cama pequena demais para os três afundou um pouco mais e esperou até que o filho dormisse e agradeceu em silencio por ter se lembrado do que é ter uma noite verdadeiramente feliz.

 
 
 

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